quinta-feira, março 24, 2005

Língua estrangeira

Já aqui tenho vindo a chamar a atenção às terríveis traduções e legendagens que grassam pela televisão portuguesa, tanto mais que eu sou fortemente apologista da legendagem por oposição à dobragem. Não é por acaso que nos países em que a dobragem é prevalente o domínio de línguas estrangeiras é baixo, sendo que a legendagem não penaliza os surdos, e, goste-se ou não, é um incentivo à alfabetização. Quando eu era puto até a maior parte dos desenhos animados eram legendados.

Dito isto quando soube que entre os objectivos de Sócrates estava a implementação do ensino do Inglês no primeiro ciclo do ensino básico cheiro cheirou-me a medida da tanga. Quando o ensino do português e da matemática estão no estado em que estão não é o ensino do inglês na 3ª classe que nos vai modernizar e tornar competitivos.
Só que cada vez mais me parece isto é um sintoma, não só da criação de um regime de facilitismo no ensino, mas também do recrudescimento de um provincianismo, ao qual poderíamos chamar patridiotismo aproveitando a expressão de MVA, que parece completamente desinteressado daquilo que se passa para além do seu umbigo.

No entanto o que mais me choca é este laxismo se ter tornado comum entre os estudantes de antropologia nos últimos anos. Sempre houve queixas acerca da utilização de textos estrangeiros no curso, principalmente em francês, e eu estou bem ciente das minhas dificuldades quanto ao castelhano, mas qualquer estudante da minha altura ficava parvo com a recusa dos estudantes de arquitectura que tinham aulas connosco em ler bibliografia que não estivesse em português. Bom, as coisas já não são assim. Os estudantes de antropologia apresentam agora o mesmo preconceito em ler bibliografia que não esteja em português.

Não interessa que a antropologia seja uma disciplina que lida com a diferença, que procura compreender a diferença nos seus próprios termos e que de certa forma faz a sua celebração. Não interessa que não haja em Portugal mercado que suporte economicamente a tradução de todos os textos antropológicos. Não interessa que a tradução e a revisão científica desses textos tenha de ter a participação de antropólogos e que portanto pode servir de nicho ocupacional para estes quando se fala tanto da falta de empregabilidade da antropologia. Não interessa que o inglês seja a língua franca moderna tendo substituído o latim enquanto língua científica, e que as grandes revistas da antropologia, quer biológica, quer social e cultural sejam em inglês. Não interessa que ao recusarmo-nos a ler outra coisa que não a nossa própria língua nos estejamos a privar do contacto com outras maneiras de ver e pensar o mundo.

O que interessa é que fazer isso dá muito trabalho, e afinal toda a gente sabe que os estrangeiros não têm nada de interessante para nos mostrar.