domingo, outubro 03, 2004

O Prestigio

Havia uma pastora, para quem isto a definia completamente. Era bela e sábia o suficiente para conquistar o respeito e a admiração quer dos seus pares, quer dos seus superiores, mas isto não tinha importância nenhuma para ela (e que outra opinião interessava quanto a isso?). Ela era uma pastora, guardava ovelhas.

No entanto as ovelhas que guardava não eram propriedade sua mas de um aristocrata. Em troca do seu serviço, ela recebia o uso de um confortável casarão, que mantinha escrupulosamente limpo, e uma porção da produção de leite carne e lã que poderia utilizar como entendesse.

Este aristocrata, tal como todos reputados pela sua opulência e esplendor, nunca se permitiria a tocar numa autêntica ovelha viva, ainda que fosse capaz de se sentar à mesa para comer uma perna de borrego na sua elegante túnica de lã. Portanto era a pastora que tratava dos problemas desagradáveis de gestão do rebanho entregando no fim do ano ao seu patrão os resultados do investimento dele através do seu trabalho.

Infelizmente o mais refinado sentido estilo não é protecção contra o infortúnio, como muitos grandes senhores descobriram. Um outro nobre viu-se em dificuldades devido a uma combinação de investimentos insensatos e simples azar, perdendo toda a sua fortuna. Por isso dirigiu-se ao patrão da pastora com a ultima herança que tinha; uma esmeralda magnífica, de grandes dimensões e tonalidade perfeita, para a trocar por metade dos rebanhos do amigo, compra que resolveria os problemas presentes e oferecia a probabilidade de rendimentos futuros.

O patrão da pastora mostrou-se tão ansioso como o desafortunado nobre para fazer a troca , pois a posse de tão precioso objecto traria grande fama e reputação à sua própria casa. Assim ambos os aristocratas começaram a orientar divisão do rebanho a partir de uma plataforma construída para esse efeito (pois nenhum aristocrata no seu juízo perfeito se arriscaria a pisar excrementos de ovelha), enquanto a pastora no curral separava as ovelhas.

A certo momento a discussão intensificou-se e o aristocrata arruinado retirou a esmeralda do bolso e começou a discorrer sobre a sua perfeição e pureza numa tentativa de convencer o amigo a ceder aos seus interesses. Infelizmente a pouca sorte do arruinado nobre voltou a manifestar-se, pois enquanto este gesticulava a pedra escapou-lhe da mão caindo no curral onde um atrevido cordeiro prontamente a devorou.

A pastora imediatamente desculpou-se profusamente pelo acidente (ainda que a culpa não fosse dela), e assegurou a ambos os homens que não havia motivos para interromper o negócio: “Vigiarei este diabrete muito atentamente”, assegurou, “e quando a pedra reaparecer como é normal daqui a dois ou três dias, lavá-la-ei escrupulosamente e entregá-la-ei pessoalmente.”

Ambos os aristocratas ficaram porém horrorizados perante a indignidade a que a pedra seria sujeita e recusaram-se a aceitar esse plano.

“Muito bem” disse então a pastora, “nesse caso matarei o animal imediatamente, e terão a jóia na mão dentro de momentos, embora eu preferisse que este cordeiro viesse a crescer num belo carneiro em de se tornar num assado”.

Mas ambos os nobre concordaram que esta solução também constituiria uma conspurcação inaceitável da pedra, e após uma curta discussão chegaram à conclusão que não havia outra hipótese que não considerá-la como para sempre perdida. Assim o arruinado aristocrata regressou a casa pobre e triste, mas seguro que a dignidade e a nobreza da sua casa em nada haviam sido beliscadas.

A pastora que há muito tempo havia aprendido a inutilidade de tentar incutir bom senso nos orgulhosos aristocratas, guardou as ovelhas para a noite metendo o jovem cordeiro num curral separado, onde o vigiou cuidadosamente. Quando finalmente a pedra percorreu o seu caminho, a pastora apanhou-a com uma pá e lavou-a vigorosamente com sabão e água limpa, levando-a depois a um mercador honesto ao qual só interessava o seu tamanho e peso em vez da sua história recente, pagando uma avultada soma por ela. Parte desse dinheiro a pastora usou nos seus confortos pessoais, outra parte deu aos que dele tinham necessidade e a maior parte guardou para uma necessidade, tendo-se tornado na mais próspera e digna pastora da região.

O cordeiro cresceu para se tornar verdadeiramente um belo carneiro, que reinou por muitos anos sobre os rebanhos mesmo não sabendo que por momentos foi o mais valioso cordeiro do mundo.

Quanto ao aristocrata arruinado, viu-se obrigado a vender o seu palácio para pagar as dívidas e a procurar a caridade de parentes que lhe deram todo o afecto que é devido a um parente caído em desgraça e cheio de autocomiseração. Hoje o seu honrado nome que não seria prejudicado por uma fortuna honestamente conspurcada não é lembrado por ninguém.



Isto não é uma farpa à quinta das celebridades, apesar de eventualmente ser merecedora da farpa.