LGP
O que significa que devo passar à rasca...
Pensamentos, comentários, revoltas e inquietudes do Eu
Etiquetas: Bella Fleck, Letras, Musica
Por arrastão.
Depois do arrastão de Carcavelos virá, por arrasto, o arrastão do pânico racista? É bem provável. Já se sente isso num artigo de opinião miserável, publicado hoje no Público, e assinado apenas (na edição online) por um "investigador de ciências políticas" (até tremo em pensar qual será a origem institucional...).
É óbvio que crime é crime. É óbvio que crime implica investigação e punição. Se é óbvio, porque sente tanta gente necessidade de fazer disso o centro da discussão quando comenta eventos que envolveram negros/ pretos/ africanos? É também óbvio que ninguém com dois dedos de testa desculpa o quer que seja com piedade sociológica ("são as condições sociais que criam o crime", etc.); o que não impede (pelo contrário, ela é precisa) a compreensão de contextos e causas. O que já demasiada gente parece esquecer ou querer esquecer é que existe um problema social específico chamado racismo - tanto a montante das condições sociais quanto a juzante dos arrastões e da sua percepção mediática.
Que tal alguém dizer o óbvio, o simples e o necessário: que perseguir os criminosos, resolver os problemas sociais e atacar o racismo são coisas distintas e igualmente necessárias?
RACISMO POR ARRASTO, NÃO!
Já se estava a advinhar. Apesar de uma boa parte (a maior?) das vítimas do "arrastão" de sexta-feira na praia de Carcavelos terem sido negros, já pude ouvir mil e um impropérios racistas sobre o assalto colectivo. Aliás é curioso como a habitual "falta de notícias" de Junho faz com que da noite para o dia todo o país fale em "arrastões", como se o termo sempre tivesse feito parte do nosso vocabulário com este significado. Pior ainda, o exagerado (provinciano?) alarmismo dos jornalistas portugueses fez com que rapidamente a notícia se espalhasse pelo mundo, com os óbvios prejuízos para a indústria do turismo que isso acarreta...
Se há um assalto, a nossa preocupação deve centrar-se nesse acontecimento e não na cor da pele dos seus executores. É que esta em nada atenua ou agrava o acto. E é o acto que deve ser prevenido, e se acontece, devidamente punido claro está.
Que tentem usar este tipo de assaltos para justificarem e propagarem teorias racistas não é, infelizmente, nada de novo. É sobretudo importante não cair em ingenuidades ou raciocínios simplistas. Um blog, como o referido no post anterior, cria-se em menos de 5 minutos. Qualquer pessoa com acesso a internet é capaz de o fazer. Neste caso a sua origem neo-nazi e branca é bastante óbvia. Ora reparem:
1) No primeiro post do blog todos os comentários inaugurais são de neo-nazis. Então é o blog da "irmandade negra" e só os fascistas brancos o conhecem?
2) No post mais recente é negada qualquer ligação à extrema-direita, dizendo que o blog existe desde Maio. Uau, fantástico, dado ser um blog com 5 posts!!! E as datas dos mesmos poderem ser livremente alteradas...
3) Nesse mesmo post são insultados os anti-fascistas! Mais que os fascistas.. I rest my case.
Boss
PENSAMENTO SEGUNDO. Por aquilo que compreendo, o roubo por "arrastão" em Carcavelos há dois dias consistiu num grupo de setenta a oitenta indivíduos - disse hoje a Rtp, mas já depois de se ter criado o mito de quinhentos - que começaram a correr e a agarrar em tudo o que podiam. Houve escaramuças, entre eles próprios e deles com a polícia, mas não vi ninguém a queixar-se de ter sido agredido (o comunicado do presidente da Câmara de Cascais dá a entender o mesmo). Aliás, pelo que se disse, houve só três feridos ligeiros: um guarda, uma senhora que se cortou numa garrafa e uma rapariga que levou uma cacetada de um polícia por engano.
Hoje à noite, as televisões foram ao directo a Carcavelos, que foi assim a praia mais vigiada do/pelo país. Foram também a Quarteira, onde dez tipos (novamente, número confirmado pela Rtp depois de um inicial cinquenta) roubaram três pares de calções numa loja e depois foram identificados pela polícia na praia. Um foi detido porque deu "um murro na mão e um pontapé na perna" ao guarda. Quase um terrorista. Isso não impediu os repórteres de perguntar às pessoas se se sentiam inseguras, de realçar que nada será como dantes e de lamentar como foi para esquecer o dia do arrastão de Carcavelos.
Pois eu proponho um exercício diferente. Lembremo-nos. Lembremo-nos para sempre do arrastão de Carcavelos como o dia em que as pessoas - as pessoas - que foram sistematicamente empurradas para fora da grande cidade, para os bairros sociais ou de lata, para os longes da vista e do coração, como o dia em que elas mostraram que existiam àqueles que as mandaram para lá e sempre estiveram demasiado ocupados para se lembrarem delas. Lembremo-nos do arrastão de Carcavelos como o momento em que um fantasma se torna carne, em que o racismo encapotado arranja justificação para existir, em que o preconceito ganha uma razão cuja causa é, por acaso, o próprio preconceito. Lembremo-nos do arrastão como a vingança dos putos postos à parte, que não aparecem em telenovelas da Tvi, acostumados a ouvirem "não podem entrar aqui assim vestidos" dos mesmos que lhes impõem a porcaria das coisas caras e de marca como o símbolo do estatuto a que nunca os deixará chegar. Lembremo-nos do arrastão de Carcavelos como o momento em que a bomba social que uma sociedade burguesa, balofa, urbana, maricas, pálida e com problemas de bexiga espoletou e deixou rebentar nas próprias mãos. Lembremo-nos do arrastão de Carcavelos como exemplo de que não se governa para os mais desfavorecidos que delapidam a segurança social, mas para os mais ricos que pagam impostos, como se não fizessem todos parte do mesmo país, da mesma sociedade, como se não partilhassem a mesma coisa pública. Lembremo-nos do arrastão de Carcavelos como a maior das psicoses de praia depois da falsa onda gigante no Algarve aqui há uns anos. Lembremo-nos de tudo isto e percebamos que em Carcavelos aconteceu mais do que setenta putos a roubar. Aconteceu a merda de uma sociedade a vir à tona da água morta e suja em que ela não sabe deixar de se afundar.